quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Dois Verbos Mudos

Permaneci deitada olhando entre os espaços dos travesseiros e seu rosto. Ali, numa só pose reparei todos os festivais do teu corpo.
Havia um copo de café já frio em cima da mesa de cabeceira e nossas roupas todas jogadas no chão, a lâmpada apagada e minhas retinas ainda acesas. Eu olhei pra você querendo te dizer alguma coisa sobre a pontualidade das palavras e o sol que invadia as cortinas. Mas o eco entre a boca e as manhãs nascidas me fizeram fingir dormir mais um pouco. Eu lançava minha respiração na sua boca e a sua vinha na direção da minha. Absolutamente integrados e minha consciência pesando em cima desta nossa liberdade magra. Aí, você se levanta pra acender seu cigarro e falar todas as possibilidades maciças de suas frases e planos, a voz branda cai por cima de mim e o jeito das tuas mãos denunciam a similaridade de todos os homens. Um mantra incompleto reafirmado nos movimentos intranquilos das bocas e línguas. As coisas recomeçadas em si mesmas e nossas pernas tremendo. Dois mundanos com seus corpos de frente e a vontade expandindo em nosso acordo corporal. E o vício confundindo até nossas crenças. Parecíamos não olhar para lugar nenhum, sem memórias ou argumentos sufocamos na vontade de apenas continuar.
Nos despimos outra vez de tudo, os olhos fechando e nossa cena dispensada.
Meu cabelo preso e tuas mãos em minhas costas, nossos olhos sorrindo e a cama inteira constatando que somos dois verbos mudos.

domingo, 27 de setembro de 2009

O Timbre

Os lábios agora quase disseram. Nem ódio ou mágoa, apenas um grande vazio nos corredores. E a imaginação tão real perseguia seu cheiro na tentativa de dispersar saudades.Os dias explodindo em cada fresta torturando em protesto a latente vontade de desistir.A fé devia estar escondida em algum canto do quarto. Percebia uma inevitável volta, insatisfeita e faminta.Entre nós, cada um em uma parte de existência da qual não se compreende. E assim mesmo, o que mais fazia falta era sentir o corpo estremecido com a vibração de sua voz.Teu timbre era uma aula. Entranhado em cada poro meu.A garganta queimando enquanto vivo em muitos lugares na tentativa de parar o que não termina por dentro. Descobrindo que não há verdade além do estraçalhado aqui e lá.E o fantasma ainda sussurrando em delírio no corredor. A voz distante marcada avulsa. Projetando uma simplicidade que dói. Nossas conversas entrecortadas e mais uma vez desconhecidas.Ao longo da noite, extremos que estranhamente me recordo. E se você não compreendesse o que escrevo, esconderia sob os lençóis o desejo pintado por todo o corpo. E então saberia.Se fosse pra exprimir a verdade maior de dentro do peito, veria que todos estão tão perdidos quanto nós.Estou humana, mastigo nossas sementes para que a lembrança permaneça.

A Nota Mais Aguda

Ainda assim, são estas palavras dispostas ao afeto que guardam o eco da tua respiração por cima dos meus cabelos bagunçados. Te abraço com a vontade apertada nos olhos. Estamos mornos e com uma embriagues catastrófica. E o receio de não estar fazendo as coisas certas que nos colavam os pés. Recebemos a marca daqueles que recuperam o som e a música. E foi com Buarque que vibramos nossas indecisões. Suspiros e lágrimas desabando como se faz com a melhor bobagem utópica presente na ingenuidade e paixão. Meu corpo com o teu escalando as paredes das tuas costas nuas. Dois loucos queimando por cima das unhas. Adornei tua boca com licor e poesia. E você repousando em vultos e canções populares.
E no leito, toda sensação possível era a de sermos duas poesias soltas nesta cidade.
Uma parafernália poética desdobrando o próprio tempo pelo teu, e meu ombro.
Esta nossa estadia sumindo por dentro do espelho.Cortando abajours, cortinas e colchões.
A nota mais aguda do teu corpo tem gestos próprios. Deslocamos e reinventamos o nível do corpo com mais um poema inaugural.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Retiro de Nancí

Onze horas. Sentada na sala, a poltrona começava a ficar desconfortável. Nancí levanta-se em direção a varanda para colocar o lixo pra fora. Era um dos poucos momentos em que saia de casa. Passava dias, às vezes semanas sem nem mesmo ir até a porta. Não gostava muito das pessoas, e quase sempre tinha a sensação de que a recíproca era verdadeira.
Morava em uma cidade pequena, com poucos habitantes. E justamente por isso, os comentários maldosos a respeito de sua auto exclusão eram rotineiros. Uns diziam que ela havia ficado assim após o suicídio de sua única filha, outros, por causa do abandono de seu marido. Todos em comum acordo espalhavam o boato de que sua família era amaldiçoada.

Nancí era uma senhora beirando os setenta anos. Decidira ausentar-se da vida em sociedade após as sucessivas perdas que sofrera. Vivia sozinha, apenas ela e sua cadela “Samantha”. Saía de casa para fazer estritamente o necessário, pagar algumas contas, e para abastecer a dispensa. Toda à noite, sentava-se à mesa e servia-se com uma pequenina porção de arroz integral e carne, sempre deixando um pouco separado para Samantha que prontamente recusava, e aos insistentes brados de Nancí comia também.
De manhã, era acordada pelo barulho das pedras que as crianças jogavam em sua janela divertidamente. Nancí odiava aqueles pequenos demônios com toda a sua força e mais ainda suas mães que permitiam tamanho importuno.
- Demônios! Vocês são filhos do cão! E as mães de vocês umas putas, por não os terem dado educação! Se eu pudesse eu...Eu... Ahhhh saiam já da minha porta!
Ao que as crianças retrucavam:
- Bruxa! Minha mãe disse que você tem pacto com o dêmo!

Nancí sabia o quanto sua vida reservada e exclusa chamava a atenção de todos que ali moravam. Mas ela simplesmente sabia que gostaria de passar o resto de seus dias vivendo desta forma. E mantinha diariamente a ordem de seus afazeres. Tudo minuciosamente repetido a cada novo dia. Acordava, sentava-se demoradamente na ponta da cama, tomava seu banho e varria o chão. No almoço e no jantar a mesma pequena porção de arroz integral juntamente com a carne conservada durante meses no congelador e dividida em partes iguais para durar pelo máximo de tempo que pudesse. Afagava Samantha, e assistia a quase toda a programação da tv. As terças e quintas era quando saía já tarde da noite para colocar o lixo pra fora. Raramente os moradores da cidade a viam em outras circunstâncias.
Em uma certa terça-feira Nancí não saiu para colocar o lixo para fora, também não fora na quinta. Como sua rara presença em público era notada, alguns vizinhos começaram a questionar o sumiço quase que por completo. Teria se mudado? Decidira enclausura-se de vez?
A vizinha do lado, uma das poucas pessoas que Nancí ainda tinha o hábito de cumprimentar quando saia, notou que as luzes continuavam acesas há dias sem serem apagadas e que aparentemente a tv de sua sala estava ligada. Samantha latia desesperadamente nos dois primeiros dias e agora cessara com seus latidos.
Um cheiro forte quase que insuportável vinha da direção da casa de Nancí quando os moradores dos arredores decidiram-se por chamá-la na tentativa de verificar o ocorrido.
Chamaram por horas sem resposta. A vizinha tentou telefonar para sua casa, mas o notou que o telefone estava ocupado. Percebendo os latidos fracos de Samantha, os vizinhos decidiram-se por pular o muro da casa e entrar para ver se algo havia acontecido.
Ao entrar no quintal, o cheiro pútrido aumentara fortemente, olharam pela janela, mas as cortinas tampavam quase toda a vista, notava-se da sala apenas a tv ligada.
Um dos vizinhos arrombou a janela da sala com alguns solavancos conseguindo entrar na casa. Quando entrou deparou-se com a cena mais chocante que já presenciara:
O corpo de Nancí estirado no chão em estado de putrefação, as mãos esticadas na direção do telefone, e o corpo soltando líquidos fétidos e a pele abrindo-se quase que por completo, enquanto Samantha comia parte de sua perna direita.
O homem cambaleou em direção a cadela, afastando-a do corpo, tentando tapar as narinas do forte cheiro que impregnava a sala.

A cidade em alvoroço, uma multidão na porta de Nancí aguardando os legistas retirarem o corpo. Todos alimentando a curiosidade mórbida de saber a causa do acontecido.
Saindo da casa, o legista pergunta ao seu parceiro:
-Qual a causa?
- Provavelmente tentou telefonar para pedir ajuda, mas não conseguiu a tempo, e a cadela trancada em casa e sem se alimentar comeu parte da perna dela. O melhor você não sabe... O jantar ainda estava sob a mesa... Arroz integral e uma pequena porção de carne...
Carne humana! Constatamos quando abrimos o congelador e vimos pedaços cortados de mãos, orelhas, coxas, pedaços de face e tudo mais... Na porta da geladeira estava o cardápio diário: segunda: parte da coxa de meu querido marido, terça: o último dedo da mão esquerda de meu querido marido e assim por diante...
- Caralho cara! Sério isso? E por que essa louca fez isso? Qual a causa da morte?
- Infidelidade meu caro... O marido a traía constantemente, pelo que contaram alguns vizinhos próximos, ela o matou antes mesmo de ele a deixar e o conservou durante meses.
- Que merda! Mas então cara, fala!Qual a causa da morte?
- Hehe. Os exames indicam uma reação do organismo dela a carne... O freezer apresentava um defeito deixando a carne apodrecer quase que por completo, ela comia mesmo assim sem notar... Digamos que foi uma forte indigestão...Hehe.

Argumentações de Uma Poesia Sem Fim

Não me recordo quando tomamos as rédeas de uma vida que já não era mais só nossa. Mas ainda lembro o gosto da angústia que sentia quando me deparava com a sensação iminente de já não fazer mais parte da sua. Era aí que eu fingia não estar sentindo o incômodo latente de estar a cada dia a perdendo mais. Nem as nossas palavras e confissões de afeto de outrora nos sensibilizavam na tentativa de nos dar mais uma chance. Você em sua mágoa e eu em minha orgulhosa maturidade. Me pegava relendo nossos e-mails e textos na busca de entender os motivos de minha desistência ou covardia. E nem assim, conseguia a coragem de pegar o telefone para que fossem feitos os devidos esclarecimentos, talvez, nem mesmo você quisesse que assim eu o fizesse, tamanha raiva declarada que estava sentindo. Foi aí que lembrei de todas as promessas mútuas bem como dos projetos e as mil afinidades, e me veio juntamente com este, a pequena pontada de dor por abrir mão de tudo que poderia estar nos aguardando.
Nem eu mesmo sei se no desespero desmedido de ter uma atitude madura e serena poderia estar perdendo a mulher da minha vida.
Nada mais antiquado do que um homem nostálgico, e era exatamente assim que me sentia, infinitamente cultuando o saudosismo de um relacionamento estabelecido e fincado em retinas virtuais.
Desconsiderava cada sintoma, na ânsia de gravar apenas nossas conversas, onde erramos, o que os dois estariam perdendo separados e o que estariam ganhando com o distanciamento.
As perdas e ganhos só aumentavam o vazio de saber que não está se lucrando quase nada, tamanha estagnação do curso dos dias sem quem se quer por perto.
Procurava em outras mulheres o gosto, o cheiro, a voz daquela que não teria ao menos tocado. E mesmo assim, nada se comparava ao que fora projetado por todas as expectativas de minha imaginação.
Tanta afinidade, tanto sentimento se desfazendo dia a dia. Acumulando a insegurança e a dúvida de imaginar qual dos dois seria o primeiro a se apaixonar novamente. As horas arrastadas, a vida sonoramente empurrada de qualquer jeito na agonia de desejar que um dos dois se envolvesse logo para dar fim ao arsenal de possibilidades levantadas paralelamente a cada nova pessoa que se aproximava.
Provavelmente, haveria uma tristeza aliviada por saber que ali não existiria mais volta.
E ainda assim a dúvida de como teria sido se os dois tivessem se permitido aquela chance.
Talvez, o amor permanecesse fragmentado em cada poesia e texto feito nos momentos em que se amaram. Talvez, o amor simplesmente acabasse na descoberta de um novo afeto, mas provavelmente, o amor ficaria preso aos textos, poemas e poesias escritas na certeza de que ali estaria a grande obra prima de suas vidas. Algo difícil de ser contestado ou vivido novamente, simplesmente pelo fato de ser: “Uma poesia sem fim”.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O Tremor

Alguma ordem formou toda intensidade não importando a direção adiante. E o rosto esquentando em uma temperatura irreversível. Um desejo ordinário de vida não identificado partindo de recordações ou por todos os lados.
Ainda pensou em voltar, mas o próprio calor do tempo desfigurava dádivas e dúvidas.
Dentro do corpo, calendários denominados por você como ponteiros de lanças.
E por causa deste meu tempo, estou perdida a todo o momento em lacunas que não sei aonde começam ou terminam.
Talvez, meu tempo seja mesmo cego, coberto da areia do mar de um Rio antigo e inadequado. Convém aterrar o estado desta alma enquanto enforco as memórias e a vontade de esclarecer as coisas.
Ainda hoje, olhei tuas escritas dedicadas a mim e não pude recuperar o olhar com que te via. Deixei igualar o vazio e o amor até o corpo sangrar.
Desacreditei meu próprio tempo na curvatura de seus olhos. Quando passasse, ficaria.
Ignorei o tremor diante de tanta coisa que havia acontecido e me conformei com tua passagem sendo apenas mais um arrepio desconhecido.

domingo, 13 de setembro de 2009

Lágrima Decadente

Por entre sertões, descobriu a lágrima mais humana brotando uma espécie de nostalgia.
Apenas o arrepio por cima do telhado em direção a queda.
Escrevia uma insanidade vulgar. As palavras mais bonitas permaneceram nas sarjetas.
Umas incoerências perdidas, cheias de vida por fazer. Seco, construindo traços vazios rumo ao caminho de volta.
O rancor, sorrateiro invadiu o que havia por baixo do tapete, arrastando por entre as solas dos pés um ranger acumulado de verdades e promessas.
O tanto deixou de ser o bastante diante da ilimitada fluidez de todas as outras existências.Vaguei no alívio de um grito. E este corpo antigo produziu uma decadente distancia entre o vazio e a lágrima que pesa.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Língua Morta

Fui escrevendo por suas entranhas e em todas as paredes as coisas guardadas na imobilidade do silêncio. Humano ao extremo, declamei mentiras de minha própria autoria. Preenchia a lacuna de quem não sabe a verdade. Uma quietude muda que sabia calar até meu desprezo.
Nos corredores, um fio de voz por dentro do corpo. A língua roxa e um tom grave querendo sair da boca, um arranhado entre os dentes constatando esta existência orgulhosa.
Na linguagem dos olhos, novo labirinto surdo, um abismo misturado com poesia e veias arrebentadas.
Coberto de palavras e o pescoço envolto em cordas. Os versos fizeram-se língua morta.
Seu medo no meio do caminho paralisou minhas palavras como quem toma posse de arames. Estagnei, recém apodrecido enquanto meus papéis flutuavam. Escrevi mais este outro desejo inacabado.
Sentia latejando entre as bochechas o gosto de uma água vazia. Os lábios adivinhavam a melancolia me rasgando os braços.
As pupilas gesticulavam dentro do peito. Sangrei até o final da voz que velava a lágrima.
O som estava a um passo de reinventar uma mudez incomparável.
Dentro do silencio, o homem acorda e leva consigo o abismo surreal entre as palavras e o muro.

Maktub

O homem sente que o tempo flui.
O homem sabe, que ainda que turvas, as respostas vem e vão.E que não existem normas específicas para vida e morte.
Morrer é no ato do romper do ciclo. A escolha daqueles que muito ouvimos falar e nada conhecemos. Pois eles, certos ou errados, mandantes ou encarregados, anjos ou demônios cortam nossas correntes. E nos levam de nós. Se termina ou se começa em outro canto...É pergunta milenar.
O homem sente que sua família, suas mãos e sua época são impregnados de outros nomes. Nomes dos quais não se lembra, mas a intuição aguça...Ele lembra do cheiro das romãs, do gosto da graviola e do toque de seus filhos de outrora.
Ele vê familiaridade na voz da jovem. Ele ouve pela segunda vez a mesma frase...ouviu quando a primeira?Ele desejou por tantas vezes aquele desejo e só lhe trouxeram tão depois...Um dia, o homem sente que encontrou o improvável, o absurdo, o extra-essencial. Ele sente então, o encontro do novo, e se recorda nitidamente que o novo é rastro preparado. Por mãos de quem?Ele sente que os passos rumo ao extemporâneo o desafiam. Porque ainda que contido, o homem sente o quão além de nós mesmos estamos nós.

Lúcia

Sua mão formigava até a ponta dos dedos, ali, permaneceu deitado, noutro nível de razão.
Na mesa de patina envelhecida, descansava os restos de cocaína e a vodka barata de uma viagem a mais da noite passada. Os quadros minimalistas caídos por cima do sofá plutônio e couro traziam a náusea da miséria dos últimos tempos.Tudo escuro, inclusive o líquido coagulado no corpo sob a cama...
Caminhando em direção ao banheiro ele limpa o vidro do espelho sujo e embaçado, o espírito ainda flutuante, caminha agora em direção à geladeira, passos arrastados, a boca ainda seca, se abre na tentativa de saciar a sede, mas o cheiro forte vindo do quarto anuncia nova náusea. Senta-se com esforço no chão do corredor cor de vinho e voltam os flashs sintomáticos aderidos ao fígado, estômago e traquéia que agora se fecha quase que completamente enquanto pouco a pouco volta a si....
Estava consumado: o bilhete, o telefonema, os gritos,o fim.Arrastando-se rumo ao quarto, põe as mãos sob o lençol de lasie e afaga o antebraço de Lúcia, o corpo alvo já em estado inicial de putrefação, ainda conserva os cabelos loiros que ele tanto amava, o sangue empretecido secava na fenda formada em seu pescoço, ainda não consegue chorar, três dias talvez? E nem ao menos uma lágrima...
Voltando os olhares para a carreira de cocaína ainda deixada sob a mesa, esboça um sorriso de canto, brincando com o novo carrossel ainda não consumido, senta-se na mesa enquanto joga beijos na direção de Lúcia. Os móveis não estavam na posição que gostava, ficou ali imaginando se fora sua fúria que jogara os rastros de objetos ao redor ou se a deslealdade de Lúcia que o incitara a ter fúria.
Logo ele, que apreciava a organização dos fatos e das coisas.Tudo em seu devido lugar...os quadros quatro dedos acima do sofá, a mesa direcionada ao quarto, o espelho centralizado acima do lavatório, nada alterado, tudo na ordem de seu lar.Um silêncio. As poças coaguladas em baixo da mesa o incomodaram, amanhã talvez retirasse um pouco dela...Voltou-se para sua infiel Lúcia, deitou ao seu lado. Tão linda...os cabelos ainda estavam loiros.

HomoLabirintus

Você sabe que está aqui por um tempo limitado.

Mas o trabalho, o relatório de quinta, o curso de terça a noite, o passeio com os cachorros aos sábados e a empada de domingo te fazem esquecer de tudo quanto fosse existencial. Daí, pra você só existe o quanto você está atrasado para a prova da faculdade e como aquela calça que você ama está justa nos quadris.
Assim, sucessivamente amanhã só existirá a conta de telefone que veio um absurdo, diga-se de passagem com ligações para o Marrocos...- Marrocos?Agora, você está sem a calça que ama e com o iminente pepino de processar a Telefonia.Então vai dormir "pê da vida".
Novo dia, novos pensamentos: no trabalho você hoje produziu bem, tirou ótima nota naquela prova da faculdade, agora está tão bem que até a calça entrou numa boa. Ficou feliz e até desistiu de processar a Telefonia.
Amanhã será outro dia...e depois mais outro...
A cada dia os que te cercam, você mesmo e a vida vão se encarregar de "fluir" rumo a novos acontecimentos. Por isso, terão dias em que ver um moleque cheirando cola na AV Rio Branco vai cortar seu coração, e outros, que nem mesmo um orfanato inteiro rogando ajuda vai fazê-la diminuir os passos rumo ao ponto de ônibus.
Dias atrás e outros mais adiante, você irá refletir o quanto o mundo é injusto e desigual e que as pessoas precisam fazer algo para ajudar...é aí que você planeja virar monge e sumir de toda essa "coisa" louca, mas depois você descobre que ama esfirra e MC lanche feliz juntamente com todo "conforto".
De repente, você leva um susto...perde um amigo, um parente ou um cônjugue. Isso acaba com sua vida. Mais do que nunca,você está certo de que não quererá mais viver.Decide começar por parar de comer, no entanto, quatro horas depois lembra de sua gastrite e come na tentativa de aliviar o "incômodo". Mas agora, com certeza você irá olhar a vida com "novos olhos", irá valorizá-la muito mais, aproveitando cada momento com cada um a sua volta,sim! Até as formigas serão exaltadas e respeitadas em sua nova fase!
Você jura que teria feito isso se dois dias depois aquele mal educado do porteiro a tivesse cumprimentado... talvez assim você o odiaria um pouco menos.
Por fim, você reflete o curso de sua vida: O quanto ela passou depressa e você ainda não conseguiu se purificar.
Não virou monge, não dedicou-se aos pobres, não fez voto de castidade, não fez nada!
Nem as orações infiel que é consegue concluir, pois dorme antes de cada amém.
No auge do desespero você clama: - Senhor o que farei?
Nenhum som é ouvido...
Na Tv ainda ligada, Marta Suplicy aconselha: Relaxa e goza...
Você ri...A vida é doida mesmo...quem diria que ao invés de Buda, Padre Marcelo Rossi ou Oxalá a luz viria de Marta.

Meia Verdade

Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se abrirão os vossos olhos e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal”.

Eu não sou Deus nem o Diabo, não sou bom nem mau. Sou fruto da mente de uma minoria que conhece os métodos de manipulação.Eu não morri na cruz, nem lavei seus pecados. Não fui mártir, nem ladrão. Uma pomba não desceu dos céus. Não ressuscitei Lázaro. Os peixes e pães jamais multiplicaram-se. Judas não foi tão cruel assim. Não sou do Papa nem de Buda. Casei e fiz amor. Nunca neguei ou afirmei.Não sou mentira. Sou uma meia verdade que oscila.

E no princípio, Deus criou os cínicos e os dissimulados.

Canto das Águas

Sentada por entre as pedras, observava o fluxo da água sempre renovada pela cascata. Jorrava um misto de paz e inquietação.
Toda aquela experiência mágica e o contato direto com a mãe natureza. Nesse momento, minha poesia quis saudar Oxum por todo o encantamento que causou em meus versos.
Senti as mãos formigarem e o peito chumbado de emoção.
Reverenciei todos os credos na tentativa de transmitir o que os olhos proseavam. Iemanjá tirou dos olhos minha água com sal para beijar o mar. E a lágrima juntou-se as cascatas e correu por toda a cachoeira.
Por vezes, encostava-se em suas imponentes pedras e depois seguia o fluxo...
Assim que o ritual iniciou-se a voz fugia e faltava-me saliva. Os braços abertos, olhos mirando cada tigela de oferenda.
É pra mamãe Oxum disse-me ele, enquanto eu permanecia em silencio abaixando a cabeça em sinal de respeito.
Ali, enquanto jogavam sob minha cabeça pipoca e canjica, minha razão travava árdua luta com toda a emoção...
No campo da espiritualidade, sempre fui poetisa descrente, mas nada poderia descrever o palpitar do peito misturado ao tremor das mãos. Deixei a reza seguir...
A vontade foi decorar cada segundo na espera de fazer daquele momento poesia singular.
Ele entoava junto das outras mulheres nas pedras seus cantos de Ebó.
Mal podia conter a vontade de rir e chorar...
As ervas em chá jogadas em minha cabeça, trouxeram a sensação de batismo...
É purificação retrucava ele. Como se pudesse ler o que eu estava pensando.
Um dos momentos mais inacreditavelmente surreais que um ser humano poderia presenciar, me senti privilegiada por fazer parte daquele culto de fé, daquele turbilhão de energia que fluía entre eles e a as águas da cachoeira.
Foi nesse exato momento em que ele me jogou... Mergulhei por alguns segundos sem lembrar ou pensar em nada... Quando emergi, o peito gritava a emoção mais forte que já pude sentir.
Então, eles jogaram todas as oferendas rumo a correnteza enquanto eu assistia extasiada este cenário delicioso...
Os olhos, as mãos e o peito aliaram-se ao pensamento e a voz que sussurrava quase em tom inaudível: - Nem consigo acreditar que estou aqui... Obrigada quem quer que seja por me permitir vislumbrar tamanha maravilha...

Dogmas e religiões a parte, constatei que a fé daquelas pessoas proporcionou a magia mais forte que meus olhos puderam ver.